Eu

Quando criei este blogue fi-lo com o intuito de falar sobre outra pessoa, alguém que significa muito para mim. Fi-lo porque senti que precisava de o fazer. Mas ao falar tanto dessa pessoa e do que eu sentia por ela, estava indirectamente a falar de mim (dos meus sentimentos, do meu sofrimento, dos meus sonhos). Pois bem, vários meses depois, é hora de me apresentar formalmente. Confesso que falar de mim, sobre coisas íntimas, mesmo que de forma anónima, deixa-me pouco à vontade. O número de visitas começa a intimidar-me, até que tenho perdido a coragem de postar tão regularmente.
Mas hoje, agora mesmo, vou falar de mim. Falar da minha pessoa como nunca falei a ninguém pessoalmente. Ou por medo, ou por vergonha, ou por tontices da minha cabeça.
Chamo-me Miguel. Bem, é o nome que mais utilizo formalmente no meu dia-a-dia e é o que me soa melhor. Não gosto muito do meu primeiro nome e escolhi este porque é elegante.
Nasci no mês de Fevereiro de 1988. Posso dizer que tive uma infância feliz. Tenho uma cassete de vídeo relativamente à época em que tinha 2 anos de idade e é impossível não sorrir sempre que vejo aquilo. Posso dizer que os meus pais, enquanto casados, criaram-me bem, com carinho e atenção coisa que já não acontece há vários anos (à excepção da parte material/económica). Considero que em termos de educação não falharam, embora tenham falhado noutras tantas coisas que agora não vêm ao caso. Cresci numa cidade relativamente pequena, onde as pessoas conheciam-me relativamente bem. Bem demais para o meu gosto. Frequentei o ensino básico sem grandes problemas. Desde criança que me dei ao respeito, embora eu me diferenciasse muito da "massa" masculina, se é que me faço entender. Nunca quis ser igual a ninguém. Na escola, nunca fiz questão de ser como os outros rapazes e de fazer o que eles faziam Nunca sofri muito com isso, mas boquinhas entre miúdos é normal. Aos 12, 13 anos apercebi-me que sentia atracção por pessoas do mesmo sexo e já optava por companhias femininas. Aos 15 anos, sensivelmente, apercebi-me que não estava no corpo certo e que eu tinha alguma coisa feminina em mim que estava aprisionada num corpo masculino. Aos 17 anos eu era um adolescente com sonhos como tantos outros e cheguei a ponderar a mudança de sexo que se tinha tornado o meu principal objectivo durante muito tempo. Eu era muito novo, muito inexperiente, não sabia bem o que era a vida. Com o passar do tempo a ideia dissipou-se. No ensino secundário eu já era uma figura um tanto ou quanto popular por aqueles lados. Grande parte das pessoas reconheciam-me, sabiam a minha alcunha embora eu nunca tenha dado confiança a ninguém fora do meu grupo de amigos/as e eu sabia que os de fora, pelas costas, gostavam de criticar o facto de eu ser um rapaz semi-efeminado. Por isso, a minha imagem tornou-se um motivo de cuidado especial, uma obsessão, desde muito cedo. Primeiro as roupas de marca, depois os perfumes caros, depois as idas a locais sociais, até à maquilhagem. Foi uma autêntica escalada. Eu estava obcecado por um estatuto social. Queria ser respeitado. Queria chegar ao topo, sem poder ser atingido. Na minha cabeça, se eu estivesse perfeito perante o olhar dos outros, eles não me podiam atacar pelo simples facto de eu ser assim. Foi assim que me impus no meio social da minha cidade, foi assim que criei uma defesa que nunca ninguém tinha conseguido destruir até aparecer o Hugo. As consequências disso mesmo são visíveis hoje. Tornei-me uma pessoa fútil, oca e infeliz. Nada daquilo valeu a pena, não depois de eu ter descoberto o que é gostar de alguém a sério.
Em 2006, mudei-me para Lisboa. Lisboa tinha se tornado uma fixação para mim. Eu estava ansioso para vir para um meio social mais tolerante e desesperado para sair daquela cidade que já me estava a sufocar. A mudança deu-se aos 18 anos. A minha adaptação foi mais ou menos fácil. Passados uns dois meses eu já não pensava só em regressar a casa para visitar a família. Estava a gostar de estar cá. Infelizmente, a faculdade e o curso só me agradaram na fase inicial. E mesmo no início eu senti alguma hostilidade por parte dos meus colegas, tanto que vou sair sair dali sem fazer muitas amizades. Mas esse é o preço da vida... Nós não podemos agradar a todos. Eu não posso mudar a minha essência nem ser aquilo que não sou nem tão pouco posso lutar contra o preconceito das pessoas. O que me intriga mais no meio disto tudo foi só ter reparado no Hugo no ano lectivo de 2009, uma vez que ele já lá andava há dois anos. Às vezes imagino como teria sido se eu o tivesse conhecido anos antes... Mas é escusado. O tempo não volta a atrás e foi assim que as coisas aconteceram. O meu declínio psicológico e académico é bastante evidente. Eu não culpo o Hugo por nada. Só estou a constatar um facto. Já estou cansado de aqui dizer que quem se meteu no meio da vida dele fui eu e não vice-versa. Pensei que um dia o muro caísse e que ele permitisse eu fazer parte do dia-a-dia dele, como tantos amigos dele fazem. Amigos que me gozaram e que gozaram com a situação e isto porque o Hugo obviamente prefere confiar mais neles do que em mim e é normalíssimo isso ser assim. Mas ele misturou tudo, não dialogou comigo, e ignorou-me. Deixou-me a sofrer, sem sentir qualquer compaixão. A parte trágica da história tem uma dupla face mas ele isso não sabe. Foi trágico para mim porque fui eu que fracassei na aproximação à pessoa de quem mais gostei na minha vida toda, mas também foi trágico para ele porque ele fez questão de afastar alguém que só lhe queria bem e assim também perdeu.
Falando do meu caso pessoal, é difícil ser-se transgénero/homossexual no século XXI. Preferia ter nascido lá para o ano 3000. Basicamente, porque vivemos num mundo dominado pela heterossexualidade, que nos é imposta como sistema normativo. Só os actos heterossexuais são considerados correctos pela sociedade. Se um rapaz curtir com várias raparigas numa só noite é um machão e é elogiado, até incentivado pelos outros. Se uma rapariga aparecer meia despida, toda bem feita de corpo, e se andar metida com vários rapazes é uma boazona. Mas se um homossexual feminino, sério e respeitável, pintar um bocado os olhos e os lábios, se se abanar um bocado e se tiver tiques então já não vale nada, mesmo não descendo ao nível da maioria dos heterossexuais. O mesmo para uma lésbica masculina: ela irá ser sempre criticada por gostar de vestir roupas largas de homem, mesmo que tenha um estilo de vida impecável. É neste mundo que eu vivo, é neste mundo que vocês que lêem vivem e é urgente pensarmos todos nisto. Segundo as normas sociais em vigor temos de ser todos iguais aos heterossexuais. Os diferentes serão aniquilados por serem isso mesmo: diferentes. As pessoas sabem muito bem apontar o dedo. Fácil é julgar, difícil é entender e aceitar. As pessoas julgam os LGBT como eu como se fossem uns criminosos ou puro lixo, sem nunca pensar que isto não é uma opção. O modo como sou, desde que nasci, não fui eu que escolhi. Isso é uma certeza. Foi a Natureza que me criou, por alguma razão que nunca irei entender. Caminhamos, lentamente, para uma maior abertura de mentalidades, é certo. Mas ainda há um longo caminho a percorrer.
Tenho vários gostos e sonhos, como qualquer outra pessoa. Em termos musicais, tenho tendência para a música pop, R&B, dance, rock e lounge/chill-out. Adoro cinema também, sendo o género de terror o que mais me agrada. Sou um socialista (PS) convicto e a política é também uma grande paixão, tanto que o meu futuro mestrado está relacionado com esse tema. Também gosto muito de ver TV (canais generalistas, de música, de cinema, de séries, de documentários) e navegar na internet é um dos meus hobbies preferidos. Sonhos, momentaneamente, tenho dois. Um deles é terminar o curso, sair daquela faculdade que só me traz recordações tristes e prosseguir com o mestrado e estágio. Já aqui disse que não tenho grande vocação para a minha área mas agora não posso recuar e pode ser que com o tempo eu me habitue. O outro sonho, tem nome próprio. É inevitável fazer planos para o futuro sem contar com o Hugo. Por mais que isto me consuma, é impossível evitar. Ele faz parte de mim. Só queria que ele não misturasse as coisas e que finalmente percebesse que não tem de deixar de ser ele só porque me tem por perto. Eu estou tão infeliz por ele me odiar que ninguém faz ideia. À noite quando me deito penso na manhã seguinte em que vou acordar e viver o pesadelo em que se tornou a minha vida. Custa-me tanto. Está a matar-me. Estou a sofrer em silêncio. Quero ir falar com ele, meter-me à frente dele, chamar-lhe a atenção, mas não tenho conseguido. Eu tremo por todos os lados quando o vejo na internet, só me dá vontade chorar e de gritar. É como se estivesse acorrentado por vontade própria. Mas uma atitude vai ter de ser tomada e brevemente. Com a ajudar dos comprimidos que já ando a tomar hei-de conseguir. Como se costuma dizer, há sempre uma luz ao fundo do túnel. E eu vou a caminhar na sua direcção. Depois deste post sinto-me muito melhor, mais leve e falei tudo o que faltava. Espero que isto me ajude a enfrentar o que por aí vem.

Obrigado a todos e todas que torcem por mim,

Miguel. :)

3 Response to "Eu"

  1. Sofia L. Says:

    Já te ando a ler há alguns meses e fico sempre com a sensação que te censuras não só por seres quem és, como és e por gostares de quem gostas. Não há nada de errado nisso. O que os outros pensam é pouco importante. O importante é que tu te sintas bem contigo.
    E digo mais: não é qualquer pessoa que escreve uma coisa destas, mesmo que seja anonimamente. Isto é de uma honestidade e maturidade tais que eu fiquei a pensar nisto, por breves minutos. És um grande ser humano. Admiro e respeito pessoas como tu. Nunca desistas de lutar por aquilo em que acreditas e que te faz feliz.

    Boa sorte.

  2. FábioG. Says:

    Oh, acredita em mim, a última coisa que tu estás é sozinho. E sei muito bem o que estou a dizer. :)

  3. Miguel Says:

    Sofia L., peço desculpa pela resposta demorada. Muito obrigado pelas tuas palavras. Considero-as como um incentivo. :)

    Agradeço-te também a ti FábioG; é muito bom saber isso.